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O Risco de Descompasso entre a Reforma Tributária e o Financiamento da Seguridade Social - Claudia Marchetti da Silva*

A reforma tributária no Brasil está sendo amplamente discutida e propõe mudanças significativas no sistema tributário atual. Entre as principais alterações, destaca-se a substituição da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). O Imposto Seletivo (IS) substituirá parcialmente o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) resultará da fusão entre o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).

No momento, estamos na segunda fase das atividades legislativas relacionadas à reforma tributária. Esta fase consiste na criação de leis complementares para implementar o IBS e a CBS, na definição de regimes fiscais específicos e favorecidos, na formação de um comitê para gerenciar o processo, e na elaboração de uma lei ordinária para o Imposto Seletivo (IS).

A Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), sob a responsabilidade da União, está vinculada ao artigo 195 da Constituição Federal, que assegura, em certa medida, a manutenção do volume de arrecadação para a seguridade social conforme o estabelecido antes da reforma:

A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

[...] V - sobre bens e serviços, nos termos de lei complementar." (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023).

O financiamento da seguridade social compreende um conjunto de políticas de saúde, previdência e assistência social. Os princípios que regem o sistema incluem: universalidade; uniformidade e equivalência; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade do valor dos benefícios; equidade na forma de participação no custeio; diversidade da base de financiamento; caráter democrático e descentralizado da administração; e, finalmente, a tão necessária solidariedade.

A seguridade social insere-se na política de redistribuição do Estado e de proteção aos riscos sociais que podem pôr em causa as condições da existência humana. As bases filosóficas do conceito de solidariedade fundam-se em ideias como interdependência, dever de ajuda mútua, responsabilidade coletiva, coesão social e dívida moral entre gerações, aproximando-se do conceito de justiça distributiva.

No entanto, a crescente ênfase no individualismo nas sociedades contemporâneas pode enfraquecer os laços de solidariedade que alicerçam o sistema. Zygmunt Bauman¹ explora como a modernidade líquida, caracterizada pela flexibilidade e pelo individualismo, pode desestabilizar as instituições tradicionais, incluindo os sistemas de seguridade social. De acordo com o sociólogo e filósofo polonês, a palavra de ordem é "flexibilidade", especialmente no mercado de trabalho, onde se prevê o fim do emprego tradicional, substituído por trabalhos de curto prazo ou sem contratos, com pouca ou nenhuma cobertura previdenciária e sempre sob a incerteza de uma "nova ordem". A vida profissional está, portanto, saturada de incertezas e inseguranças. O autor descreve um mundo onde a flexibilidade é universal e a vida dos trabalhadores é marcada pelo desenraizamento, evidenciando a desintegração das certezas construídas pela sociedade industrial. Em suas palavras, "a incerteza do presente é uma poderosa força individualizadora".

Esses desafios contemporâneos ressaltam a importância de manter e fortalecer os princípios da seguridade social para assegurar uma proteção eficaz contra os riscos sociais e promover a justiça distributiva.

A reforma tributária, sem uma devida análise acurada das mudanças pretendidas, coloca em risco o financiamento da seguridade social ao prever que eventual aumento de arrecadação decorrente da reforma da renda "poderá ser considerada como fonte de compensação para redução da tributação incidente sobre a folha de pagamentos e sobre o consumo de bens e serviços", ou seja, da CBS, tendo em vista que o IBS não é de competência da União.

Art. 18. O Poder Executivo deverá encaminhar ao Congresso Nacional:
I - em até 90 (noventa) dias após a promulgação desta Emenda Constitucional, projeto de lei que reforme a tributação da renda, acompanhado das correspondentes estimativas e estudos de impactos orçamentários e financeiros;
(...) Parágrafo único. Eventual arrecadação adicional da União decorrente da aprovação da medida de que trata o inciso I do caput deste artigo poderá ser considerada como fonte de compensação para redução da tributação incidente sobre a folha de pagamentos e sobre o consumo de bens e serviços.

Esse cenário levanta a questão: será uma bênção, uma maldição, ou simplesmente uma contradição?
Por um lado, pode aliviar a carga tributária sobre o consumo e incentivar a geração de empregos, beneficiando os consumidores e trabalhadores. Por outro lado, se não for implementada com a devida cautela, pode comprometer a sustentabilidade do financiamento da seguridade social, colocando em risco a proteção social oferecida pelo Estado.

_________________________
¹BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001


 
*Claudia Marchetti da Silva advogada, consultora tributária e pesquisadora. Doutoranda em Direito Fiscal pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Tributário. Autora de livros e artigos de Direito Tributário e coordenadora da obra "Mulheres quais são seus direitos" publicado pela editora Revista dos Tribunais.